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Mente sã

 

 

"A falta de tempo livre tira-nos

uma parte de sermos humanos"

 

 

Não é só o tempo que nos transforma.

O tempo livre também

Maria João Lopes

 

Aquelas férias grandes eram transformadoras. Não é só o tempo que nos transforma. É o tempo livre também. Quando podemos, como dizia Agostinho da Silva, “poetar”, vadiar. Depois daquelas férias, regressava sempre com mudanças acontecidas e a acontecer dentro de mim. Chegava outra ao Outono.

Vem-me tudo à cabeça de repente: lembro-me de ficar a ler até às seis da manhã, era começar e acabar o livro no mesmo dia, não havia escola. Lembro-me de ter fumado o meu primeiro cigarro, até me lembro ao som de que música foi, mas não quero contar, lembro-me de nos enfiarmos num café a tarde toda em dias de sol e de acharmos boa ideia ir para a praia à noite.

Nessas noites, havia revelações. Meio às escuras, havia conversas intermináveis e declarações sobre a vida, nunca mais tive disponibilidade para conversas assim, estou sempre com pressa. Parecia tudo tão alinhado de vez em quando, no meio do desalinho que é a adolescência, embora isto das férias grandes também me traga outras tantas memórias da infância.

Lembro-me de amizades a estrear, trocávamos moradas e chegávamos a corresponder-nos. Fiz amigas a sério. Ainda hoje o somos, mesmo que nunca estejamos juntas. Lembro-me de me apaixonar muitas vezes. Lembro-me do baú de metal branco que passava com bolos na praia.

Não me lembro disto, porque não era um episódio, mas tenho a certeza que acontecia: eu era uma pessoa antes das férias grandes começarem e transformava-me noutra, não sei se melhor, se pior, mas com mais experiências e horizontes, ao fim daqueles meses.

Acontecia tanto que, depois do Verão, até me apetecia voltar à escola. Parece uma contradição, porque eu não queria que as férias acabassem, mas a verdade é que também gostava de comprar os cadernos e de forrá-los com fotografias de músicos e sei lá mais o quê. Dava-me prazer folhear os livros novos, cheirá-los. Não é invenção, ficava com vontade de estudá-los, punha-me a preencher o horário em papel, a organizar estojos e capas com separadores, a secretária.

Desde que deixei de ter aquelas férias grandes, nunca mais voltei a sentir isso. Para tudo, precisamos de tempo. E tempo é algo que não abunda nos dias que correm.

Lembrei-me disto com a chegada do calor, do bom tempo (não é o mesmo tempo, mas os dois cruzam-se no caso). Com esta luz ao fim do dia, parece que não chego tão tarde a casa. Lembrei-me do cheiro a férias, ao bom tempo e a muito tempo. Lembrei-me da cidade meia deserta, das praias cheias. Das noites de janela aberta. Não havia escola e havia muitas tardes e horas. Para ficarmos para ali a ouvir música. Em silêncio, com perguntas repentinas. Havia tanto tempo, mas não havia tempo a perder. Podíamos desperdiçar tempo. No que nos apetecesse. Nunca era desperdiçar, era aproveitar.

Aquelas férias tão compridas traziam-me gente nova à vida, pessoas de outras cidades, de outros países. Com elas, vinham livros, músicas, ideias novas, até roupas diferentes, outros estilos. O Verão e aquelas férias grandes eram transformadores. Não é só o tempo que nos transforma. É o tempo livre também. É a passagem do tempo, sim, nos meses e estações. Mas é também esse tempo em que podemos, como dizia Agostinho da Silva, “poetar”, vadiar. Depois daquelas férias, daquele tanto tempo seguido desocupado, nunca voltava a mesma. Regressava sempre com mudanças acontecidas e a acontecer dentro de mim, chegava outra ao Outono.

A falta de tempo livre tira-nos uma parte de sermos humanos. Tira-nos os momentos em que nos podemos deitar de barriga para cima a olhar para as estrelas. Tira-nos as conversas sobre nada. Tira-nos o tédio. Tira-nos o ócio. Tira-nos os pátios, as sombras, os passeios, as praias. As ideias súbitas, as demoradas, tira-nos muitas vontades. Até de regressar à escola e ao trabalho. E de regressarmos uns aos outros, não porque alguém faz anos ou vai mudar de cidade. Regressarmos uns aos outros só porque sim, porque temos tempo, porque não temos nada para fazer. E, às tantas, não sei, não tenho tempo para pensar nisso agora, mas, às tantas, não haverá nada de muito mais importante para fazermos do que isso, do que essa coisa de nós e os outros.

In Público, 5 de Maio de 2019, 8:49

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Todos os bullies 

são cobardes

Gabriel Leite Mota

Economista, doutorado em Economia da Felicidade

4 de Janeiro de 2019, 9:03

As políticas da escola devem ser de uma vigilância constante, facilitação da denúncia dos actos de assédio físico e moral e de penalização exemplar dos agressores.

bullying sempre existiu nas escolas, mas ganhou, nos últimos tempos, mais atenção, devido à classificação do fenómeno com termo americano. Porém, este é dos casos em que um americanismo é bem-vindo: é um problema sério, que cria infelicidade, legitima a agressão e viola os direitos humanos. Claramente, uma deseducação que não é compatível com uma instituição educativa.

Os bullies são os agressores, que exercem todo o tipo de violência sobre colegas, e são vistos como os fortes, os valentões, temidos por uns, admirados por outros. Porém, são todos uns cobardes.

Cobardes porque só atormentam e atacam os que sentem mais fracos ou vulneráveis: ora porque são diferentes (os mais inteligentes, os menos inteligentes, os deficientes, os que usam óculos, os gordos, os mais pobres numa escola de ricos, os mais ricos numa escola de pobres, os homossexuais, os doutra cor, etc.), ora porque são mais sensíveis e não ripostam perante a agressão. Os bullies nunca se metem com iguais ou com quem consideram mais fortes. É que, aí, o medinho aperta…

Na verdade, os bullies tendem a ter problemas emocionais: ou porque vivem em ambientes familiares desestruturados, seja em famílias pobre ou ricas, onde falta educação, regras e ternura, ou porque são estruturalmente maus e mal-educados, tendo aprendido que é lícito gozar, explorar, ameaçar ou bater noutros seres humanos, que consideram inferiores a eles.

Se é verdade que o problema do assédio físico e moral entre jovens nas escolas deve ser combatido numa dupla vertente: por um lado, educar as vítimas para se imporem, denunciarem e ganharem autoconfiança, por outro, tratar os bullies da sua agressividade e má educação, é na parte dos bullies que primeiro se tem que actuar – nomeadamente, ensiná-los que coragem é dominar o próprio medo, não atacar quem não se sabe defender.

As escolas não podem considerar normal que o bullying exista como parte da vida.

As crianças que são vítimas de bullying não ficam mais preparadas para a vida (como alguns mitificam), assim como os bullies também não (se não mudam os seus comportamentos, tornar-se-ão marginais ou bestas). Este tipo de agressividade e desrespeito pelo outro e pela diferença é algo que as escolas têm que combater e erradicar.

A verdade é que, infelizmente, muitas crianças nascem em seios familiares onde não existem competências parentais, sofrendo assim as consequências nefastas de serem criadas por incompetentes (a este respeito, as comissões de protecção de menores deviam ser mais eficazes e actuantes e retirar mais frequentemente as crianças dos progenitores incompetentes, independentemente da classe socioeconómica dos mesmos).

Dessas famílias incompetentes podem nascer vítimas ou agressores, mas urge combater os fazedores do mal, não sobrecarregar quem sofre com a maldade alheia.

As políticas da escola devem ser de uma vigilância constante, facilitação da denúncia dos actos de assédio físico e moral e de penalização exemplar dos agressores.

A escola é também um local de criação de cidadãos, não só de aprendizagem de conteúdos teóricos. Se as famílias falham na educação das suas crianças, não lhes ensinando que não podem maltratar os demais nem considerarem-se superiores aos outros, então compete à escola trabalhar com esses jovens, recorrendo a incentivos positivos e castigos, para que, no futuro, não se criem mais criminosos ou insuportáveis arrogantes, que tantas vezes chegam a lugares de chefia.

Os direitos humanos, o respeito pela diferença, o simples respeito pelos outros têm que ser uma das tarefas basilares de qualquer escola. Nesse sentido, a prevenção e a erradicação do bullying deve ser um objectivo central.

In jornal Público

4 de Janeiro de 2019, 9:03

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Maria do Carmo Cordeiro Cruz

6 de Janeiro de 2019, 8:26,

Jornal Público

Comunicar com os adolescentes

O desafio da adolescência não é só o da procura de uma identidade própria que não seja a imposta pelo mundo dos adultos. É, também, o da auto-regulação emocional. E este é, igualmente, o desafio dos pais.

Nunca, como hoje, foi a adolescência tão estudada e, no entanto, continua, possivelmente, a ser a fase mais desconhecida do desenvolvimento humano. A comunicação entre pais e filhos adolescentes permanece uma das principais questões levantadas no consultório do psicoterapeuta. Por uns e por outros:


— Os miúdos estão sempre ligados à rede... já não falam connosco, não nos contam nada.

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— Os meus pais não me ouvem, não entendem, só criticam.

O conceito de adolescência existe apenas há cerca de cem anos e é próprio da sociedade moderna, que reconhece e define uma transição entre a infância e a idade adulta. Durante este tempo, o conhecimento científico produzido tem permitido perceber as alterações físicas, emocionais e comportamentais próprias desta fase, mas a realidade social dos jovens tem sofrido uma mudança drástica.

A concepção de família tem-se transformado imensamente nestes últimos cem anos. Quer por fora, quer por dentro. A família tradicional alargada deu lugar, sobretudo, à família nuclear anónima, sempre em movimento sujeita a um isolamento que se traduz em solidão. A convivência comunitária, familiar e, sobretudo, entre gerações, tem decrescido ao ponto de existir a queixa comum a pais e filhos adolescentes de que já é difícil comunicar. Já não se conversa. E quando não se conversa como é que se (re)conhece o outro? Sim, estamos em rede. Hoje, os jovens estão “sempre ligados” mas com que “rede” se não houver relação? E se não houver boa comunicação entre pais e adolescentes, como é que estes enfrentam os desafios naturais desta fase com segurança e auto-estima?

Não é fácil lidar com os adolescentes. A sua energia é, muitas vezes, paradoxal, ora letárgica, ora explosiva, e os sentimentos de grande vulnerabilidade e dependência coexistem com outros, bem diferentes, de arrogância e rebelião. Mal contida e desacompanhada, esta energia pode ser descarregada em comportamentos desadequados como o consumo de drogas, álcool, automutilação, bullying, isolamento, tudo isto frequentemente acompanhado por estados depressivos e ansiosos.

O desafio da adolescência não é só o da procura de uma identidade própria que não seja a imposta pelo mundo dos adultos. É, também, o da auto-regulação emocional. E este é, igualmente, o desafio dos pais.

Enquanto sociedade, exigimos muito porque lidamos mal com a mudança e com a transformação. Temos muitas expectativas em relação aos adolescentes, quer pessoais quer colectivas. Desejamos, mesmo que secretamente, que se “encaixem” sem grandes dramas. A sua angústia existencial desafia-nos, os seus comportamentos testam-nos, as suas queixas põem-nos em causa e sentimo-nos, muitas vezes, tão inexperientes e vulneráveis como eles. E sem soluções!

O melhor que podemos fazer pelos adolescentes é agir como adultos centrados, com limites e boa auto-estima e estarmos presentes para os escutar com os ouvidos e o coração. Só assim poderemos conter as suas angústias.

Na terapia com adolescentes é a relação que os ajuda criando um espaço seguro e protector onde podem expressar-se sem julgamentos.É importante falar a mesma linguagem, compreender os seus gostos, conhecer as novas apps que usam, os conteúdos que lhes interessam e os ideais que têm. O humor também ajuda.

Nem só a falar se comunica, por isso a técnica da Caixa de Areia ou Sandplayé uma excelente ferramenta clínica não-verbal e não invasiva à qual os adolescentes aderem com facilidade e que costumo utilizar no consultório.

Ao construir um cenário tridimensional numa caixa de areia e com recurso a um variado leque de miniaturas, os jovens representam simbolicamente a sua visão do mundo e de si próprios. A construção feita na areia constitui uma comunicação mais profunda do que qualquer tentativa forçada de verbalização. Estes cenários dão origem a associações e relatos espontâneos permitindo ao adolescente uma observação mais objectiva dos seus problemas, defesas, desejos e potencialidades. O psicoterapeuta ajuda a integrar a informação assim obtida. O processo promove uma maior tomada de consciência, auto-regulação emocional e a descoberta de novas soluções.

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